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sábado, 26 de julho de 2014

O bêbado e a feira – o astro e o palco

No meio da ladeira, em um chão ainda coberto por cascalho, os cabelos brancos despontam reluzidos pelo pôr do sol. Baixinha, aparentemente com mais de 60 anos, a senhora traz em uma de suas mãos uma vara. Ao seu lado está um dos filhos. Rapaz alto, barbudo, forte. Carrega consigo um carrinho de mão. Os passos são lentos, compassados, pacientes até, seguindo o ritmo do barulho causado pelo atrito entre a carroça de ferro e o cascalho.

Alguém grita quando os avista – Lá vem a mãe de Lili. Detrás dos dois, vê-se o pôr do sol e algumas crianças correndo no pé da ladeira, em frente a um terreno baldio onde costumam jogar bola. De segunda a sábado, a rotina nesse horário é a mesma para a pequena família e, também, para as crianças.

A subida da ladeira da Rua José Marcelino, que desemboca na feira livre de Poções, é apenas uma das tantas vias que dão acesso ao purgatório para muitas famílias.  Por outro lado, ali é uma das entradas ao oásis para aqueles que apreciam a destilada, a cachaça, da cana boa ou ruim, da temperada ou da pura, do conhaque falsificado ou de péssima qualidade.

Lili era um dos que costumava frequentar a Praça da Feira de segunda a sábado para beber sua aguardente. Todos o conheciam. Era uma pessoa folclórica. Usava barba, como seu irmão, só que era muito mais baixo. Devia ter seus trinta e poucos anos. Certa vez, seu vício o levou a entrar em uma farmácia, pegar um litro de álcool da prateleira e tomá-lo. Foi parar no hospital.

Sua mãe e seu irmão, como se pagassem uma penitência, saiam de casa rumo à feira, sempre ao entardecer. Era um ofício penoso. Todos sabiam como seria a volta deles para casa. A plateia se fazia presente, como em um teatro, para assistir a uma comédia. A senhora retornava, com a vara na mão direita, já de frente para o pôr do sol, sem olhar para os lados, sem querer perceber o público. Ao seu lado esquerdo, o filho com o carrinho de mão, tropeçando nas pontas do cascalho. Lili, mais uma vez, caído dentro do carrinho e com as pernas, os braços e cabeça para o lado de fora.

Essa cena se repetiu por inúmeras tardes, até que Lili se foi, ainda jovem. Da feira e do mundo, Lili desapareceu. Os finais de tarde perderam sua segunda estrela, os meninos ficaram órfãos do espetáculo. A luz se apagou também para a mãe e o irmão de Lili. Hora de recolher o carrinho de mão, hora de jogar a vara no mato. Assim também, outros tantos se foram desta mesma forma na Praça da Feira. Outras tantas famílias e outros tantos meninos ficaram com os corações dilacerados por não terem mais por quem sofrer, nem de quem rir.

As vendas, os botequins, as boas amizades, os risos, as pilhérias, são todos elementos que alimentam aqueles que não conseguiram ir por outros caminhos e se tornaram vagabundos, não no sentido pejorativo, mas quase uma acepção Baudelairiana.  Os caminhos errantes eram de venda a venda, de botequim a botequim, de risos a risos, segurando o copo com a mão trêmula, descascada, e sempre com os dizeres – mais uma.

Assim se foram tantos. Inúmeras vidas levadas a esmo. Muitos não passaram dos 40 anos, como Lili. Quando um se vai, a feira fica um pouco mais triste, perde o seu peregrino de barracas, de copos, de vida sem amores correspondidos. Todos lamentam, relembram os casos mais engraçados, riem, mas não choram. Parece natural que alguém que se encontrou naquele meio parta apenas como mais um bêbado que as crianças atentam, as senhoras dão comida, os feirantes riem e os familiares sofrem.

Texto: Fábio Agra
Reprodução apenas com autorização do autor 

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