No meio da ladeira, em um chão ainda
coberto por cascalho, os cabelos brancos despontam reluzidos pelo pôr do sol.
Baixinha, aparentemente com mais de 60 anos, a senhora traz em uma de suas mãos
uma vara. Ao seu lado está um dos filhos. Rapaz alto, barbudo, forte. Carrega
consigo um carrinho de mão. Os passos são lentos, compassados, pacientes até,
seguindo o ritmo do barulho causado pelo atrito entre a carroça de ferro e o
cascalho.
Alguém grita quando os avista –
Lá vem a mãe de Lili. Detrás dos dois, vê-se o pôr do sol e algumas crianças
correndo no pé da ladeira, em frente a um terreno baldio onde costumam jogar
bola. De segunda a sábado, a rotina nesse horário é a mesma para a pequena
família e, também, para as crianças.
A subida da ladeira da Rua José
Marcelino, que desemboca na feira livre de Poções, é apenas uma das tantas vias
que dão acesso ao purgatório para muitas famílias. Por outro lado, ali é uma das entradas ao oásis
para aqueles que apreciam a destilada, a cachaça, da cana boa ou ruim, da
temperada ou da pura, do conhaque falsificado ou de péssima qualidade.
Lili era um dos que costumava
frequentar a Praça da Feira de segunda a sábado para beber sua aguardente.
Todos o conheciam. Era uma pessoa folclórica. Usava barba, como seu irmão, só
que era muito mais baixo. Devia ter seus trinta e poucos anos. Certa vez, seu
vício o levou a entrar em uma farmácia, pegar um litro de álcool da prateleira
e tomá-lo. Foi parar no hospital.
Sua mãe e seu irmão, como se
pagassem uma penitência, saiam de casa rumo à feira, sempre ao entardecer. Era
um ofício penoso. Todos sabiam como seria a volta deles para casa. A plateia se
fazia presente, como em um teatro, para assistir a uma comédia. A senhora
retornava, com a vara na mão direita, já de frente para o pôr do sol, sem olhar
para os lados, sem querer perceber o público. Ao seu lado esquerdo, o filho com
o carrinho de mão, tropeçando nas pontas do cascalho. Lili, mais uma vez, caído
dentro do carrinho e com as pernas, os braços e cabeça para o lado de fora.
Essa cena se repetiu por inúmeras
tardes, até que Lili se foi, ainda jovem. Da feira e do mundo, Lili
desapareceu. Os finais de tarde perderam sua segunda estrela, os meninos ficaram
órfãos do espetáculo. A luz se apagou também para a mãe e o irmão de Lili. Hora
de recolher o carrinho de mão, hora de jogar a vara no mato. Assim também, outros
tantos se foram desta mesma forma na Praça da Feira. Outras tantas famílias e outros
tantos meninos ficaram com os corações dilacerados por não terem mais por quem
sofrer, nem de quem rir.
As vendas, os botequins, as boas
amizades, os risos, as pilhérias, são todos elementos que alimentam aqueles que
não conseguiram ir por outros caminhos e se tornaram vagabundos, não no sentido
pejorativo, mas quase uma acepção Baudelairiana. Os caminhos errantes eram de venda a venda,
de botequim a botequim, de risos a risos, segurando o copo com a mão trêmula,
descascada, e sempre com os dizeres – mais uma.
Assim se foram tantos. Inúmeras
vidas levadas a esmo. Muitos não passaram dos 40 anos, como Lili. Quando um se
vai, a feira fica um pouco mais triste, perde o seu peregrino de barracas, de
copos, de vida sem amores correspondidos. Todos lamentam, relembram os casos
mais engraçados, riem, mas não choram. Parece natural que alguém que se
encontrou naquele meio parta apenas como mais um bêbado que as crianças atentam, as
senhoras dão comida, os feirantes riem e os familiares sofrem.
Texto: Fábio Agra
Reprodução apenas com autorização do autor
Reprodução apenas com autorização do autor
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