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domingo, 29 de novembro de 2015

Eryk Rocha fala sobre Brasil, Cinema Novo e futebol

Foto: Tayná Protásio
O cineasta Eryk Rocha veio a Vitória da Conquista participar da Mostra Cinema Conquista – Ano 11 e apresentar o seu mais recente filme, o aclamado Campo de Jogo. Filho de Glauber Rocha, Eryk é um dos principais nomes do cinema brasileiro atualmente. Ao lado de outro grande documentarista, o cineasta Geraldo Sarno, Eryk Rocha esteve também em Poções para participar da Mostra Paralela, uma extensão da programação da Mostra Cinema Conquista que incluía a exibição de Campo de Jogo e A Linguagem do Cinema, filme de Geraldo Sarno. As sessões aconteceram no Centro de Cultura Fedele Sarno. Enquanto era exibido Campo de Jogo, Eryk Rocha concedeu uma entrevista, na biblioteca do Centro de Cultura Fedele Sarno,  ao jornalista da Mega Rádio, Fábio Agra, e falou sobre o Brasil, cinema e futebol, suas três paixões.
Fábio Agra: Você disse na Mostra Cinema Conquista e aqui também que esse filme Campo de Jogo reúne três paixões – futebol, sua primeira paixão, cinema e o Brasil. Destrinchando, de forma rápida, essas três paixões, como você vê o cinema, o futebol e o Brasil atuais?
Eryk Rocha: Futebol atualmente é um pouco do reflexo do Brasil. A crise, dentro e fora das quatro linhas no futebol brasileiro, reflete muito o momento ruim do país, eu acho. Falta de imaginação, de um futebol medíocre, pobre, sem criatividade, que foi copiar o que há de pior no futebol europeu. Os europeus absorveram o que há de melhor no nosso futebol. Teve essa inversão aí. Então, é um futebol que precisa urgentemente se reinventar, assim como o país.
Futebol brasileiro se distanciou de si mesmo, das suas próprias raízes, da sua própria origem, criatividade, do improviso, da ginga, da dança. Dessa coisa toda da marca do futebol brasileiro, essa marca do futebol arte. Uma coisa que a gente foi perdendo, foi esquecendo, se afastando disso, infelizmente.
E acho que depois do 7 a 1, que foi o ápice dessa tragédia, a gente pensou que poderia haver uma mudança radical desse projeto do futebol brasileiro, etc. e tal. E não. A gente viu foi se aprofundar isso. Foi uma mesmice. Foi ainda mais para trás. Pra quem não pensava que não poderia regredir, retroceder, a gente retrocedeu.  Isso foi o que aconteceu.

Exibição de Campo de Jogo durante Mostra Paralela
Foto: Héwerton Brito
O projeto político do futebol brasileiro excluiu o povo da própria Copa do Mundo. Excluiu o povo mais pobre dos estádios. As televisões de alta definição mostraram isso com muita clareza. Você não via quase negros no estádio. O povão mesmo não foi. Ingressos caríssimos. Então o futebol brasileiro passa por esse processo de elitização, de higienização do que se chama de Padrão FIFA. Isso é terrível. Um patrimônio cultural e público do povo foi privatizado por empresas, gângsteres, corruptos. Essa crise toda agora está revelando claramente isso.  Isso tudo reflete dentro das quatro linhas, na maneira de se jogar futebol. São dois lados da mesma moeda – a tragédia.
E o Brasil também, de alguma forma. Eu não vejo um projeto de país. Eu acho que houve um retrocesso evidente nos últimos anos, nessa passagem do Lula para Dilma. Pensando em termo de governo, na minha visão houve um retrocesso em vários pontos.
E o país, um delírio fascista, com vários erros da esquerda, que a esquerda cometeu, do PT, e uma direita sedenta historicamente, que sempre quis estar no poder, não quis dividir as riquezas do país, uma elite egoísta, burra, fascista muitas vezes, tem um delírio, um surto-fascista que está comandando o país. Terrível. Uma coisa que é um momento ruim para o país, que ninguém sabe aonde vai dar.
E a questão do cinema. Eu acho que o cinema brasileiro tem uma questão do documentário bem interessante atualmente, forte, expressivo, que eu vejo. E pensando no documentário e ficção no sentido mais clássico, acho que o cinema de ficção em relação a outros países da América Latina, a gente está atrás, ao cinema chileno, ao cinema argentino, o próprio cinema mexicano, o próprio cinema colombiano. Acho que a gente precisa de alguma forma criar uma identidade maior para o nosso cinema.
Ao mesmo tempo houve avanços fundamentais. Está se produzindo muito cinema no Brasil. 150 longas por ano. Mas não tem espaço de exibição também. Tem milhares de filmes, mas e aí? Onde vão ser exibidos? Os filmes não estão chegando ao povo, na população brasileira. Chegam muito pouco. É uma coisa muito elitista. Mas isso é um problema mundial, não só do Brasil. Nosso mercado é ocupado pelo cinema americano, como grande parte do mundo, e a gente está sufocado por outros filmes, sendo espaço de escoamento para esses filmes. Então, eu vejo um pouco isso. Mas acho que tem uma geração nova de cineastas, que eu sinto que faço parte, que está chegando com muita força e com propostas muito pessoais e políticas também, ao mesmo tempo, propostas expressivas.
Fábio Agra – o Filme Campo de Jogo é poético e mostra um futebol verdadeiro, brasileiro, de raiz, aquele futebol de várzea que movimenta o bairro, a rua. Esse futebol poético e verdadeiro se perdeu e não tem mais recuperação?  
Eryk Rocha: Eu acho que esse futebol acontece no cotidiano do povo, nesses campos de pelada, nesses campos de várzea, como no Sampaio, no Campo de Jogo. Esse futebol está acontecendo o tempo todo. Só que, primeiro os campos de várzea estão diminuindo muito no Brasil por conta da especulação imobiliária. Esses campos de várzea que são um dos últimos espaços democráticos de resistência do povo. São pontos de encontro das comunidades pobres e das periferias brasileiras, das favelas, onde você não tem outros pontos de lazer. Você não tem biblioteca, você não tem sala de cinema, você não tem uma sala de concerto de música.
Então esses campos representam muito para essas comunidades. E, infelizmente, esses campos estão diminuindo muito no Brasil. E esses campos são a expressão desse futebol genuíno, desse futebol popular. Foram nesses campos que surgiram muitos de nossos grandes craques.
Então eu acho muito sintomático esses campos estarem diminuindo, encolhendo e cada vez mais a gente produzir menos craques, menos grandes jogadores. Exemplo disso – qual o grande jogador que a gente tem hoje, brasileiro? É o Neymar. Não tem outro. O Brasil sem o Neymar fica um time banal. Ele é o toque de genialidade que tem ali. Esse futebol que você se refere, ele existe realmente no futebol brasileiro, mas ele precisa ser olhado com carinho e ser integrado num projeto de futebol onde os clubes voltem à figura do olheiro. De olhar os jogadores das periferias, dos campeonatos de várzea, do campeonato de favela. Esse olheiro trazer isso para os clubes formarem jogadores de base. E não só o trabalho do empresário, que é o atravessador, que é o intermediário, que prepara o jogador desde muito cedo para ser um jogador privilegiado na condição física e prepara o corpo e mente dele para ir para a Europa muito cedo, para a Ásia, para o mundo árabe, etc., muitas vezes para jogar em times de segunda, terceira categoria, que não são times expressivos.
Então é essa indústria que se tornou o futebol. E nisso se privilegia muito mais o físico, o jogador de marcação, o jogador bruto, do que a criatividade, a ginga, a negritude, a coisa das peladas, dos babas. Então esse é um problema que acontece. E esse problema, as duas coisas estão totalmente entrelaçadas – um problema político, de quem gerencia o futebol brasileiro, e isso se reflete dentro das quatro linhas. Então, um futebol muito pobre. Eu até desconfio que a gente não passe para a Copa do Mundo agora.
Tudo se pode recuperar, pode se reinventar. A criatividade, a energia, o talento do povo brasileiro, é tão forte que está aí, mas precisa ser olhado e realmente trabalhado no sentido sério como um projeto, como uma coisa mais consistente.

Fábio Agra: O documentário Campo de Jogo, do ponto de vista do futebol, tem uma narrativa linear, com início, intervalo e fim de partida. Mas nesta linearidade estão outros elementos estéticos que nos fazem pensar também sobre o tempo e sobre a própria narrativa. O que te sensibiliza na hora de pensar um filme como Campo de Jogo em que o estético e o tempo são importantes para definir o modo de narrar?
Eryk Rocha: Eu acho que Campo de Jogo é um filme que é poético e popular ao mesmo tempo. Um filme que já passou em diversas telas do mundo e no Brasil para públicos de cinéfilos e não cinéfilos, para público que gosta de futebol e que não gosta de futebol. E é um filme que, me parece, pela experiência que estou tendo há um ano com o filme, transcende isso. Ele não é um filme só para guetos. Eu sinto que ele está conseguindo chegar na emoção das pessoas, se comunicar com a sensibilidade, ele tem uma força sensível.
E a inspiração da linguagem do filme está muito em cima do próprio futebol. O futebol ele se auto-explica. Ele tem uma linguagem muito forte. Ele faz parte da nossa cultura, do nosso povo. Ele não é só um esporte. Ele faz parte da nossa formação como povo, da nossa forma de se movimentar no mundo, de se mexer.
A bola é uma das coisas mais democráticas da cultura brasileira. Qualquer criança nasce com uma bola. Eu com quatro anos brincava com uma bola. Qualquer coisa que é esférica e roda permite o jogo. Não é só uma bola, uma (bola de) meia, uma bola de gude, uma bola de ping-pong. Então as crianças estão brincando, estão jogando. O futebol tem essa coisa que está muito impregnado no nosso imaginário, nas nossas vidas. E não é uma coisa racional.
Então na hora de construir Campo de Jogo, na linguagem do filme, eu me inspirei muito no próprio futebol, que é uma arte do espaço, do tempo e do movimento, assim como o cinema, e muito nessa catarse, nesse embate dos corpos, nesse campo, que é um campo de jogo, mas é um campo de batalha onde coexiste uma felicidade, uma alegria muito grande, mas também coexiste um drama, uma tensão muito grande. Então esses sentimentos coexistem no filme.
Por isso eu digo, o futebol não é racional. Você não explica, não fica racionalizando. Os comentaristas muitas vezes, quando vou ver jogo na TV, tentam explicar o jogo. Tem explicação para tudo, mas mais da metade do que eles falam é balela porque o futebol transcende isso. Ele é um jogo onde o mais fraco pode ganhar do mais forte. É o jogo do imponderável. Você não sabe, você não tem o controle disso. Mesmo o futebol oficial, o futebol midiático não tem o controle. A prova disso maior foi o 7 a 1. Você jogando a Copa do Mundo no Brasil, uma semifinal Brasil contra a Alemanha onde tudo estava plenamente armado e preparado para o Brasil ser o grande campeão e tomou de 7 a 1 no país do futebol.
Ninguém conseguiu controlar isso. Tudo ficou claro. Ficou claro que um time era muito bem preparado, muito talentoso, e outro um time medíocre. As máscaras caíram, ali. Então, isso que me fascina no futebol. Essa falta do controle. Nem a publicidade, nem o capitalismo, nem todo o dinheiro do mundo, nem aquela multidão de gente foi capaz de controlar e sustentar uma mentira. Tudo se revelou, transbordou. A invenção humana, a capacidade humana transborda.
Um time que se preparou em Porto Seguro na origem do Brasil, comendo peixe com os pescadores, como foi a Alemanha, investindo nos trabalhos sociais, investindo para construir escolas, trabalhos comunitários, e o outro time que se preparou com todos os holofotes, com toda a publicidade, com canais de televisão pousando no meio do campo da Granja Comary, programas ao vivo na televisão, uma exposição, muito auê, blá blá blá, para chegar na hora… e aí vamos ver no campo.
Então o campo revela a realidade dos países inclusive, de dois projetos de país. Então, isso me fascina no futebol. Essa possibilidade, mesmo no futebol oficial, do não controle, do transbordamento. E em Campo de Jogo eu tento traduzir um pouco isso, esse estado do embate, do duelo, é o cinema olhando o futebol. É trazer a dimensão épica, estética do futebol através do cinema.
Fábio Agra: Falando um pouco agora sobre Geraldo Sarno. Qual a influência que Geraldo tem em teu cinema?
Eryk Rocha: Geraldo, além de ser um grande cineasta, um dos maiores documentaristas do país, o mestre, o Geraldo é um pensador do cinema, é um filósofo. É um homem e um artista extremamente generoso. Uma das provas disso a série A Linguagem do Cinema que ele está fazendo, que é a curiosidade dele pelo universo de outros autores, de autores diferentes da nova geração. E essa pegada que o Geraldo tem também de ensinar o cinema, de dar aula, de transmitir, compartilhar o conhecimento dele, a experiência dele. Isso é uma coisa muito bonita, que é muito raro nos dias de hoje ter alguém com essa alma, com essa generosidade. Essa forma de ser do Geraldo, essa essência dele, esse afeto dele, isso me toca muito assim. É uma referência para mim constante. Quando eu penso em referência, não só de uma grande artista, mas de um homem, de uma pessoa, eu penso no Geraldo.
Esse exemplo – ele volta para Poções, se reaproxima depois de um bom tempo e estamos aqui nessa casa. Ele faz questão de conseguir uma casa com a família dele, articular toda uma história com a contribuição de um grupo de pessoas para fazer dessa casa um espaço de cultura, de reflexão, de encontro, de debate. Isso com uma idade já avançada. Um senhor. Isso é um ato de extrema beleza, generosidade, que eu admiro muito. É um paradigma para mim.
Além de ele construir, criar os filmes dele, os projetos dele, ele está ao mesmo tempo preocupado em abrir outros caminhos, em passar o bastão, transmitir para novas gerações. Isso é absolutamente raro num mundo que a gente vive. Para mais além de te dizer que o cinema dele me influencia nisso ou naquilo, eu poderia falar sobre isso também, mas não. A vida dele me influencia, porque a vida, o homem, é mais importante que a arte. Não adianta você ser um grande artista se você é um homem, uma pessoa mesquinha, egoísta, individualista, que é um pouco do estado do mundo das pessoas.
Cada vez mais cada um pensando no seu projeto pessoal, fazer seus próprios filmes, em conseguir dinheiro para seus próprios filmes. O mundo se transformou um pouco nisso, em geral, nesse tipo de atitude. O Geraldo vai na contramão disso. Então isso é absolutamente eterno .
Fábio Agra – Cinema Novo ainda é um cinema de vanguarda no Brasil e por quê? O Cinema Novo feito pelo seu pai.
Eryk Rocha: E pelo Geraldo também.
Fábio Agra – pelo Geraldo Também.
Eryk Rocha – São da mesma geração.
Se a gente for olhar a história do cinema brasileiro não tem como você não olhar antes e depois do Cinema Novo. A gente pode olhar o Cinema Novo através de vários prismas. Pode falar que o Cinema Novo acabou em 68 com o Ato Constitucional Número 5 e pode falar também que o Cinema Novo ainda existe, que é um estado de espírito. Tem várias visões, mas o mais importante do Cinema Novo é como abriu caminhos não só para o cinema brasileiro, mas para a arte, para a cultura brasileira, de forma geral.
O Cinema Novo fundou o audiovisual brasileiro. Porque o Cinema Novo surgiu numa época em que a televisão brasileira estava engatinhando, a televisão era muito fraca. Então o Cinema Novo projetou uma imagem do Brasil para o Brasil mesmo e para o mundo, revelou o país num momento de transformação, de um novo Brasil que estava nascendo, onde tudo era novo.
Então ele criou uma iconografia, ele filmou pela primeira vez o rosto do brasileiro, do povo, do negro da favela, do sertanejo, do sertão, do sertão da Bahia, de um mundo urbano que estava surgindo naquele momento, das grandes cidades. O Cinema Novo é um movimento extremamente heterogêneo, com autores muito diversos, cada um com sua proposta. Mestres do nosso Cinema. Então, o Cinema Novo representa a tradição da nossa arte de invenção, do nosso Cinema de Invenção. Isso é belo e será eterno porque isso está aí. Isso é um patrimônio do Brasil. Não só meu pai, mas o Joaquim Pedro de Andrade, Geraldo Sarno, Leon Richman, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Ruy Guerra, Cacá Diegues e tantos outros que a gente pode citar.
Então nesse sentido, acho que o Cinema Novo é uma constante provocação para as novas gerações. Vários dos filmes, não todos, mas vários dos filmes são muito pertinentes, muito atuais na forma de mostrar o Brasil e na própria linguagem dos filmes, uma linguagem ousada. Uma linguagem que mostra essa complexidade que é o Brasil. Então é a nossa história. História não como uma coisa de museu. Não a história do ponto de vista demagógica, não de uma forma saudosista, mas de uma forma presente, constante provocação.
O Cinema Novo até de alguma forma assusta um pouco a nova geração porque é um Cinema tão forte, a gente tem autores e filmes tão expressivos que a nova geração às vezes tem uma dificuldade, às vezes, alguns autores, de lidar com isso. É uma relação às vezes problemática. Porque o Cinema Novo é também a geração que veio depois do Cinema de Invenção, de Rogério Sganzerla, de Júlio Bressane, Ozualdo Candeias, de Andrea Tonacci, quer dizer, é uma dissidência, é uma outra geração do Cinema Novo também. Então é um patrimônio não só do cinema brasileiro, mas da cultura brasileira. É a nossa memória. E não uma memória do passado. Uma memória do futuro.
*Entrevista publicada originalmente no site da Mega Rádio em 16 de outubro de 2015

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